Miguel Stanley, diretor da White Clinic e vice-presidente da Digital Dentistry Society
“Não acredito que a tecnologia faça um dentista melhor dentista”. Quem o afirma é Miguel Stanley, fundador e diretor da White Clinic, reconhecido como pioneiro na implementação clínica em muitas áreas de tecnologias avançadas, para quem a ideia de tecnologia sem formação “é inútil”. Na sua opinião, cada vez que se aposta neste domínio, é imperativo “fazer um investimento igual num recurso humano capacitado e bem treinado”. Em entrevista à Maxillaris, o também vice-presidente da Digital Dentistry Society – e membro de várias instituições científicas e académicas de cariz internacional – antevê que no futuro “será o paciente a decidir de forma mais consciente, a tomar decisões auxiliado por inteligência artificial”. Miguel Stanley, que foi recentemente nomeado um dos 100 melhores médicos dentistas do mundo pelos seus pares e considerado uma das”32 Pessoas mais Influentes da Medicina Dentária”(pela revista Incisal Edge), considera mesmo que a era dourada do setor “ainda está para vir”.
De um modo geral, como comenta a evolução das ferramentas digitais no setor da Medicina Dentária?
É óbvio que as novas ferramentas digitais na Medicina Dentária têm vindo a “invadir” de forma positiva a nossa profissão. Pessoalmente penso que é importante calibrar a linguagem quando usamos o termo Medicina Dentária digital. Digo isto porque basta um dentista comunicar com o seu técnico de laboratório através de uma plataforma social através de vídeo, tal como WhatsApp, e já está a usar uma ferramenta digital. Portanto, considero importante colocar cada uma das múltiplas ferramentas digitais em segmentos distintos. Existem as tecnologias de gestão clínica, que já se utilizam há muitos anos, como o Raio-X digital, que utilizo na clínica há mais de 22 anos, estes já têm o dom da ubiquidade transversal a quase todas as clínicas nacionais.
No entanto, temos as tecnologias mais avançadas, como por exemplo scanners intraorais e faciais, e tecnologias que analisam os movimentos mandibulares integrando esta informação com os scanners intraorais. Além disso, temos última geração de softwares que podem ser utilizados pelo dentista, bem como pelo técnico de prótese dentária que, eu diria, é a plataforma universal de comunicação hoje em dia. Estas tecnologias já são mais dispendiosas e requerem um treino mais específico, e são realmente indispensáveis para o dentista do futuro.
Ainda há muitos profissionais que usufruem pouco destas novas tecnologias e, em alguns casos, o fator tecnológico até pode representar um atraso na consulta ou no tratamento. Como se pode inverter esta realidade?
Em primeiro lugar eu não acredito que a tecnologia faça um dentista melhor dentista. Os fatores que realmente fazem um dentista ser excelente são, experiência, bom protocolo clínico, bons materiais, tempo adequado para trabalhar, boa equipa, bom laboratório, entre outros. A tecnologia apenas ajuda na comunicação e aquisição de informação. Conheço muitos dentistas que conseguem fazer coisas incríveis sem tecnologia. No entanto, as camadas mais jovens têm muito a beneficiar na utilização da tecnologia porque ela ajuda muito na comunicação entre equipas, em pedir ajuda a terceiros, e na análise detalhada do trabalho, bem como, no design do mesmo. Não é apenas uma ferramenta incrível na execução do trabalho, mas na forma como pensamos nela. Como tal, é fundamental que os grandes grupos da Medicina Dentária invistam na tecnologia e na formação para as camadas mais jovens porque vai ajudar muito a mitigar a falta de experiência.
Além disso, acredito que as tecnologias ajudam muito a integrar o paciente no plano de tratamento evitando complicações. Sabemos que hoje em dia existe uma enorme partilha de pacientes entre colegas e a única forma de controlar toda a sequência e ter a certeza de que nada falha ou escapa, é através da tecnologia. Portanto, se um dentista estiver a fazer tudo do início até o final, muitas vezes não precisa de tanta tecnologia, mas em Medicina Dentária interdisciplinar, a tecnologia é de facto indispensável.
Considera que a formação neste campo, em matéria de dispositivos de diagnóstico e tratamento, tem vindo a corresponder às necessidades (e ao ritmo) do processo de digitalização que está em marcha?
Desconheço a realidade da formação nesta área em Portugal. Estou muito ligado a nível internacional, mas nunca fui convidado para participar na formação a nível académico em Portugal. Teria o maior prazer em fazê-lo. Não obstante, acredito que as grandes marcas e digo isto porque conheço os CEO’s da maior parte destas empresas tecnológicas, estão incrivelmente focados em aumentar a oferta a nível educacional à volta do mundo, não apenas presencialmente através de congressos mas também online.
Quanto tempo demorará este processo de adaptação ao digital?
O processo de adaptação acontece à velocidade de toda a implementação. Ou seja, à medida que se vai adquirindo a tecnologia, as equipas vão-se inteirando como integrar no workflow diário. Já há alguns anos que venho a alertar os donos de clínicas que fazem investimentos em tecnologia que devem ter muita atenção ao tempo que isto requer. Por exemplo, integrar um scanner intraoral numa clínica não é tão linear, nem é sempre mais rápido do que uma impressão em silicone por exemplo. É preciso ter formação com o software, pois a técnica em si com os novos scanners não é tão complicada e a curva de aprendizagem é relativamente rápida. As clínicas que não alocam o tempo adequado para preparar o paciente, abrir o computador abrir a ficha clínica de cada paciente, preparar a tecnologia para fazer o scan corretamente e depois processar esta informação de forma correta requer perto de 30 minutos, irão ter dificuldade em integrar esta tecnologia.
Como fundador da Slow Dentistry Global Network, temos vindo a estudar de forma profunda os timings das coisas, e para as clínicas que preferem fazer as coisas mais rapidamente, e que têm a ilusão de que estas tecnologias são muito mais rápidas do que as técnicas tradicionais, não é bem assim. Elas permitem fazer muito mais isso é verdade, mas no início é preciso dar tempo e mudar estratégias.
No que diz respeito a todas as clínicas a nível nacional passarem a ter um workflow 100% digital, isso depende da economia do país em si. Esta transformação é dispendiosa e acredito que nem todos vão conseguir fazê-lo. Infelizmente, tal como tudo na vida, aqueles que conseguem trabalhar com as melhores marcas com o tempo adequado de integração irão vencer esta corrida para o futuro. Por isso, digo logo no início, aqui, que não é preciso ter tecnologia para ser um dentista fantástico.
O scanner intraoral é hoje um substituto, em toda a escala, das moldagens convencionais?
É uma pergunta complexa, eu já trabalho com esta tecnologia desde 2015 e tenho todas as marcas e as últimas gerações das mesmas na clínica. Temos muita experiência nesta matéria.
Posso dizer que em alguns casos nada substitui uma boa impressão em poliéter. Estou a falar de casos muito complexos de boca inteira.
No entanto, para a grande maioria dos trabalhos individuais e pequenos como ortodontia com alinhadores, eu diria que hoje em dia um bom scanner consegue substituir a impressão. Só que aqui, convém ter um excelente técnico de prótese dentária que entende como interpretar estas imagens e também a utilização de impressoras 3D de grande qualidade. O digital não melhora os erros, antes pelo contrário, realça-os.
A indústria dos softwares também tem vindo a crescer rapidamente. Na sua opinião, que critérios devem ser seguidos antes de proceder à escolha de determinado software?
Eu diria que o critério principal é trabalhar com um software que seja “open source”. Ou seja, que consegue receber STL e DICOM de todas as fontes. O futuro está nas plataformas que integram todas as fontes de informação. Algumas empresas tentam criar circuitos fechados, raramente têm sucesso. Obviamente alguns casos incríveis, mas geralmente são mais caros. Eu adoro sistemas que são abertos e que permitem adaptar e integrar coisas que já possamos ter sem ter que as vender ou atualizar com um grande custo para a empresa.
Utilizar tecnologia digital é sinónimo de um melhor resultado final do trabalho proporcionado ao paciente?
Como já referi, não! O dentista experiente com boa formação que trabalha de forma análoga pode, em muitas circunstâncias, até ter resultados melhores do que alguém que não tenha experiência ou conhecimento a trabalhar com as melhores tecnologias digitais. A tecnologia ajuda e enaltece, não corrige ou melhora um mau tratamento. Eu até costumo dizer, que o mau médico dentista deve fugir das tecnologias digitais! É muito rápido apanhar um tratamento mal-executado através destes meios, porque toda a gente consegue ver. Antigamente, uma má impressão ficava apenas entre o dentista e o técnico de prótese. Hoje em dia, utilizando tecnologias digitais esta informação é partilhada muito rapidamente. Eu acredito que é uma forma incrível de diferenciar quem é quem.
Mas volto a dizer, não podemos esquecer que no passado os dentistas conseguiram fazer coisas incríveis de grande qualidade sem qualquer tipo de tecnologia. Mas tinham mais formação, mais tempo e grandes técnicos de prótese.
Investir na digitalização é uma aposta garantida? Isto é, significa reduzir, a médio ou longo prazo, os custos do consultório?
Nem sempre isso é verdade. Eu penso que é muito mais importante investir em bons profissionais, bem treinados e dar lhes o tempo adequado para trabalharem de forma ética e responsável. Vejo com muito maus olhos estes novos grandes grupos entrar no mercado a contratarem jovens Médicos Dentistas e não lhes darem tempo suficiente para trabalharem de forma controlada e segura. Temos de estar incrivelmente atentos a isto.
Mas obviamente, qualquer clínica que investe nas tecnologias fundamentais do universo digital tais como CBCT, scanners intraorais, fresadoras, etc. terá maior e melhor capacidade de produção. Mas volto a relembrar, é imperativo que cada vez que se aposta numa nova tecnologia é necessário fazer um investimento igual num recurso humano capacitado e bem treinado para trabalhar com ela. Tecnologia sem formação é inútil.
Que disciplinas da Medicina Dentária têm beneficiado mais com o processo de digitalização em curso?
Sem dúvida, onde se viu uma maior transformação foi nos laboratórios dentários. A capacidade e qualidade de produção mudou completamente. Digo isto pois nos últimos cinco anos temos investido fortemente no laboratório interno, e estou muito consciente disto.
Obviamente estes avanços tecnológicos têm sido acompanhados também pela indústria que está a criar materiais novos também muito interessantes. Hoje em dia, conseguimos fazer coisas com cerâmicas monolíticas que antigamente era impensável fazer graças às tecnologias digitais.
E depois temos obviamente a ortodontia através dos alinhadores que hoje em dia também consegue integrar CBCT, criando condições para um diagnóstico muito mais sério a nível periodontal. E depois, por último, as guias cirúrgicas que de facto estão a ser cada vez mais utilizadas na nossa profissão.
Como perspetiva o futuro destas tecnologias e como vão influenciar a profissão nos próximos 10 ou 20 anos?
Tenho pensado muito sobre isto, e acredito que o paciente virtual está a chegar. O que é que isso quer dizer? Quer dizer que, no futuro vai ser possível digitalizar toda a informação de um paciente e colocar isso na Cloud, e será o paciente a decidir de forma mais consciente, a tomar decisões auxiliado por inteligência artificial. Além disso, haverá muito mais controlo sobre os materiais a colocar dentro da boca, que hoje em dia simplesmente não existe. Acredito que a tecnologia vai revolucionar de forma integral a forma como os médicos dentistas trabalham e como os pacientes consomem Medicina Dentária. Vai ser muito mais difícil no futuro “enganar” o paciente ou trabalhar mal. É uma excelente altura para começar a investir na formação, e na ética profissional e talvez focar mais em fazer as coisas bem feitas porque a tecnologia vai apanhar todos os “maus atores” que andam a fazer as coisas mal feitas sem qualquer tipo de controlo.
Por isso, digo há já alguns anos: a era dourada da Medicina Dentária ainda está para vir.
*Originalmente publicado em Maxillaris.