Tenho uma grande paixão pela cirurgia e os meus dias são normalmente ocupados com o tratamento de casos complexos, incluindo os que envolvem a reconstrução 3D de ossos e tecidos moles em torno de implantes dentários e a reabilitação oral abrangente, com a minha equipa de longa data na White Clinic, em Lisboa, Portugal. E tenho uma grande paixão por ligar a saúde sistémica à saúde dentária.

Apenas um dentista?

No passado, quando as pessoas me diziam coisas como “Oh, tu não és médico, és apenas dentista”, eu recuava e sentia-me mal comigo próprio e com a nossa estimada profissão, e não sabia muito bem como responder. Nos últimos anos, tenho vindo a compreender que há algo mais nefasto na afirmação, uma dicotomia nós versus eles que separa a comunidade médica da comunidade dentária, e esta suposta separação não parece ser questionada ou desafiada. Já alguma vez se perguntou porque é que não há dentistas na maioria dos hospitais do mundo? É como se houvesse uma barreira invisível a separar a boca do resto do corpo.

O termo “dentista” leva à percepção de que apenas arranjamos dentes e, por exemplo, quando fazemos a extracção de um dente, a única coisa envolvida neste processo é um dente que vai para o caixote do lixo, mas, na realidade, isso não é toda a verdade. A nível biológico, qualquer extracção dentária é uma cirurgia óssea e, uma vez extraído o dente, o maxilar, que contém medula óssea, é imediatamente exposto à cavidade oral, que contém saliva com um microbioma bem documentado e, se o paciente tiver sido submetido a muitos tratamentos dentários, existe um risco elevado de bactérias e fungos patogénicos na boca que entrarão em contacto com a medula óssea saudável. Nenhum outro cirurgião ósseo no mundo aceitaria tal contaminação do local da cirurgia. Porque é que nós o fazemos?

O núcleo do nosso sistema imunitário

Tendo em conta o número de extracções dentárias realizadas, o tratamento do canal radicular como terapia fundamental no nosso arsenal para salvar dentes, os implantes e todas as outras ferramentas incríveis de que dispomos para restaurar a função e a estética, será que temos estado a ignorar a única coisa que liga os médicos aos dentistas e vice-versa – que é a imunologia? Quais são os efeitos imunológicos de todos estes tratamentos? E, mais importante ainda, como é que isto afecta a nossa saúde sistémica quando são mal-executados ou contaminados? No nosso trabalho diário, todos nós vemos muitas zonas com tratamentos antigos ou desactualizados que sabemos que precisam de ser refeitos, mas os pacientes optam por não o fazer ou até acreditam que estamos apenas a tentar ganhar mais dinheiro ao sugerir isso. Como podemos explicar-lhes que isto pode estar a afectar a sua saúde sistémica, especialmente a pacientes com uma doença autoimune ou cancro, para os quais é imperativo assegurar a menor quantidade possível de inflamação sistémica e não ter nada a sobrecarregar o sistema imunitário.

Existem muitos artigos sobre a relação entre a doença oral e a doença sistémica, e há décadas que sabemos que a doença periodontal pode causar estragos no nosso bem-estar geral. Existem provas mais do que suficientes para mostrar que as bactérias da gengivite e da doença periodontal podem entrar na corrente sanguínea e causar uma série de problemas de saúde sistémica.

Se isto é verdade para a gengivite e a doença periodontal, que ocorrem naturalmente e se devem, na sua maioria, a negligência por parte do paciente ou a uma predisposição genética, então o que dizer de locais de extracção antigas com raízes residuais infectadas ou de um dente que foi submetido a um tratamento do canal radicular há 30 anos sem um dique de borracha e que agora tem um quisto associado? Penso que precisamos de fazer mais perguntas, e talvez esta seja uma oportunidade para a comunidade dentária finalmente sentar-se à mesma mesa que os médicos.

Como tal, temos de compreender como podemos melhorar os nossos diagnósticos e rastreios para garantir que os nossos pacientes estão a receber não só um check-up dentário, mas também uma inspecção de infecções crónicas de baixo grau produtoras de citocinas ou inflamação no maxilar, que pode ocorrer naturalmente ou ser o resultado de tratamentos dentários antigos, desactualizados ou mal-executados. E se pudéssemos ajudar um pouco mais estes pacientes que procuram desesperadamente soluções para melhorar a sua saúde sistémica?

Como é que os dentistas podem ajudar estes pacientes?

Penso que temos uma oportunidade única na área da medicina dentária para prestar assistência a estes pacientes, mas precisamos de actualizar as nossas ferramentas de diagnóstico – muitos de nós ainda está a utilizar apenas as radiografias 2D como a principal ou única ferramenta de diagnóstico. Por que razão estamos a aceitar a utilização apenas de radiografias quando o resto da indústria médica utiliza novas tecnologias, como a ressonância magnética, a endoscopia, a tomografia computorizada e as análises de sangue, quando necessário? De que outros instrumentos dispomos para ajudar e melhorar as nossas capacidades de diagnóstico? Porque é que, quando efectuamos uma cirurgia oral, continuamos a fazer apenas radiografias e raramente tomografias CBCT? Porque não fazer também análises ao sangue? A falta de congruência aqui é enorme. Uma cirurgia é uma cirurgia, quer seja efectuada por um dentista ou por um médico. O sistema imunitário vê as coisas da mesma forma; não faz a distinção entre a rótula e o maxilar. Temos de mudar o paradigma.

Compreendo como é difícil para os dentistas, logo na primeira consulta, dar um diagnóstico exaustivo, especialmente quando se trata de questões que não faziam parte do motivo principal da visita do paciente. Os pacientes também podem ser resistentes se entenderem que lhes estamos a tentar vender alguma coisa. Além disso, algumas das questões identificadas podem ser o resultado do nosso próprio trabalho ou do trabalho de um colega da nossa comunidade, o que se torna incrivelmente difícil e até embaraçoso explicar a um paciente. A maioria dos nossos pacientes já fez tratamentos dentários noutro local; esta é a norma em medicina dentária.

Além disso, os pacientes muitas vezes esperam que todos os tratamentos dentários, independentemente do tempo decorrido, durem toda a vida e que, se não há dor, está tudo bem, como se, de alguma forma, a dor fosse o único ou o primeiro sintoma a aparecer quando algo está errado. Sabemos que não é esse o caso. Sabemos também que é impossível garantir tratamentos para a vida toda e que a maioria dos tratamentos tem um tempo de vida de 10 a 15 anos, mesmo quando fazemos um bom trabalho.

Outro factor que contribui para o problema é o facto de que, em muitas clínicas de todo o mundo, o tempo concedido aos dentistas na primeira consulta não ser o suficiente. Aprendi isto enquanto fundador da Slow Dentistry Global Network, através da qual podemos ver claramente que a maioria das clínicas em todo o mundo simplesmente não tem tempo suficiente no seu fluxo de trabalho diário para efectuar diagnósticos aprofundados e, para agravar esta situação, muitas vezes a única tecnologia utilizada é uma radiografia periapical do dente a ser tratado e não radiografias de boca inteira. Isto significa que o médico dentista não tem uma visão global dos dentes.

Quando um paciente vai ao cardiologista para um check-up, por norma existe um protocolo e um relatório que o médico de família consegue compreender. O mesmo aplica-se a outras especialidades. Porque é que isto não é normalizado na medicina dentária? Porque é que alguns dentistas olham apenas para um dente? Alguns olham apenas para os dentes e para a estética e outros olham para tudo. Como é que podemos melhorar esta situação? Não estaremos nós, de facto, a ser o nosso pior inimigo ao não termos uma abordagem normalizada ao diagnóstico oral completo a utilizar na primeira consulta com um paciente?

Alguns outros desafios que os dentistas também têm estão relacionados com o tempo que demora a explicar o diagnóstico da boca inteira e, por vezes, também a falta de formação que muitos dentistas têm para compreender isto, porque muitos de nós estamos concentrados sobretudo nos dentes e não na imunologia – já é suficientemente difícil falar de um dente, quanto mais da boca inteira!

Mudar o paradigma

Recentemente, tenho estado a desenvolver um software de inteligência artificial (IA) chamado Missing Link, que tem como objectivo ajudar a estreitar a distância entre dentistas e médicos. Este programa tem vindo a utilizar a aprendizagem automática, com base em milhares de radiografias panorâmicas realizadas durante um longo período e avaliadas por uma equipa de dentistas altamente qualificados. Os nossos engenheiros de IA são alguns dos melhores do mundo e desenvolveram uma tecnologia própria em torno desta plataforma. É bastante original, uma vez que não examina propriamente os dentes, mas sim o osso à volta dos dentes para detectar qualquer evidência de perda óssea na medula óssea que possa ter sido causada por inflamação ou infecção, como um quisto periapical.

O que é que o programa de IA Missing Link procura?

Procura quistos, dentes impactados, perda óssea em torno de implantes e problemas na área apical de dentes tratados e não tratados e artefactos que indiquem que algo possa ter sido deixado no osso após a cirurgia. O Missing Link não é uma ferramenta de diagnóstico ou um dispositivo médico neste momento, mas é uma ferramenta de rastreio muito eficaz que pode analisar de forma muito rápida e precisa uma radiografia panorâmica e fornecer um relatório pormenorizado e fácil de compreender, destacando onde existem problemas evidentes no osso (unidades de Hounsfield reduzidas). O relatório é tão fácil de ler que até o paciente o compreende, e também pode ajudar o paciente, através de um serviço de geolocalização, a conectar-se com dentistas, radiologistas, hospitais ou clínicas mais próximos para fazer um exame de CBCT. É importante compreender que apenas um médico pode efectivamente fornecer o diagnóstico final após os resultados do CBCT e a observação clínica e, se o diagnóstico for positivo, fornecer o tratamento necessário para eliminar todas as fontes de infecção e inflamação óssea. Isto terá efeitos imediatos na saúde sistémica do paciente, reduzindo as citocinas produzidas pela infecção e inflamação, melhorando o bem-estar sistémico do paciente.

O Missing Link foi desenvolvido para ser utilizado por médicos, especialistas em cancro, hospitais e companhias de seguros. Com o consentimento dos pacientes, podem analisar as suas radiografias panorâmicas e ajudar os pacientes a obter o tratamento dentário de que necessitam para reduzir a inflamação sistémica. Ao contrário de outros programas de IA na área da medicina dentária, o Missing Link não olha para os dentes e não procura cáries dentárias ou qualquer outro problema que a maioria das tecnologias de IA faz. Este é um programa muito direccionado.

De forma única, permite que um médico, normalmente alheio ao mundo dentário, prescreva um exame para determinar se o paciente tem uma inflamação no maxilar que produz citocinas. Até à data, não existia outra forma de os médicos saberem, para além da comunicação verbal, se os seus pacientes apresentavam patologias orais. Qualquer médico de clínica geral pode pedir a um cardiologista que examine o coração de um paciente e pode esperar, no mínimo, um electrocardiograma e o relatório médico daí resultante, e o mesmo aplica-se à investigação de qualquer outro órgão do corpo: será gerada algum tipo de imagem e um relatório do especialista será enviado ao médico de clínica geral para fornecer algumas respostas. Mas como é que um médico pede um relatório a um dentista se os dentistas só olham para os dentes e não para estas questões específicas e se não têm as ferramentas ou a formação adequadas? Acreditamos que existe aqui uma grande lacuna nos cuidados de saúde. É por isso que o Missing Link tem como objectivo conectar os médicos aos dentistas e oferece uma ferramenta para a comunidade médica.

Os engenheiros da equipa estão actualmente a desenvolver a capacidade de realizar rastreios e diagnósticos em exames CBCT e radiografias de boca inteira, que é o método de diagnóstico de eleição nos EUA.

*Escrito pelo Dr. Miguel Stanley – leia o artigo completo aqui.