A crise silenciosa na medicina dentária: é ético prestar cuidados desactualizados num mundo moderno?

No seu mais recente artigo, o Dr. Miguel Stanley destaca um cenário com o qual muitos dentistas em todo o mundo se debatem: querer prestar cuidados de saúde de nível mundial e gerir os desafios económicos do mundo real. Mais importante do que reconhecer o problema é garantir que o sector evolui, porque a medicina dentária merece um sistema baseado na confiança, na qualidade e na responsabilidade. E porque os pacientes merecem melhor.

Introdução

Actualmente, a medicina dentária encontra-se numa encruzilhada entre a evolução tecnológica e a realidade económica. Embora avanços incríveis como a imagiologia 3D (CBCT), guias cirúrgicos impressos em 3D, cirurgias assistidas por laser, fluxos de trabalho digitais e novos materiais biocompatíveis tenham redefinido o padrão de cuidados, muitos pacientes ainda recebem, sem saber, tratamentos desactualizados – muitas vezes com a impressão de que estão a receber os melhores cuidados disponíveis. De acordo com quem?

Não se trata apenas de uma questão técnica, mas sim de uma questão ética.

É aceitável que os dentistas prometam “o seu melhor” enquanto confiam em técnicas, tecnologias e materiais desactualizados devido a pressões financeiras? Num mundo ideal, todos os dentistas teriam a melhor tecnologia, formação actualizada, todo o tempo para fazer o que é correcto, uma abordagem de equipa interdisciplinar e materiais de última geração. Infelizmente, a grande maioria das clínicas em todo o mundo não se pode dar a esse luxo. Mas será que “fazer o seu melhor” ou “tentar o seu melhor” é realmente o melhor?

E, mais importante ainda, será que os pacientes se apercebem da diferença e será que as seguradoras recompensam os melhores cuidados ou sabem sequer a diferença?

A verdade oculta sobre as pressões económicas da medicina dentária

Oferecer uma medicina dentária moderna e de alta qualidade é dispendioso.

Considere apenas alguns exemplos:

  • Um aparelho de CBCT de última geração custa entre 50 000 e 150 000 euros.
  • A tecnologia laser avançada para desinfecção cirúrgica pode custar mais de 60 000 euros.
  • A formação adequada para dominar estas tecnologias e técnicas pode custar dezenas de milhares de euros ao longo da carreira de um dentista.
  • Investir tempo – em vez de apressar os pacientes – reduz o volume diário de pacientes em 50-70%.

Entretanto, a margem de lucro média global das clínicas dentárias ronda os 5-10% – significativamente inferior à de muitas outras indústrias de serviços profissionais.

Resumindo: o sistema financeiro não está naturalmente concebido para recompensar uma medicina dentária demorada, cuidadosa e de alta tecnologia.

Mas as expectativas dos pacientes não mudaram.

Os pacientes esperam – e merecem – os melhores cuidados disponíveis.

Slow Dentistry e a exigência de padrões mais elevados

Em resposta a estas questões sistémicas, criei a Slow Dentistry Global Network: um movimento que encoraja os dentistas a abrandarem, a dedicarem mais tempo ao diagnóstico e ao tratamento, a darem prioridade à segurança dos pacientes e à qualidade em detrimento da quantidade.

No entanto, mesmo dentro desta filosofia, as estruturas económicas mais amplas empurram frequentemente as clínicas para fluxos de trabalho mais antigos e técnicas, tecnologias e materiais ultrapassados, simplesmente para sobreviverem.

Isto leva a uma realidade incómoda:

  • Na universidade, os dentistas aprendem os padrões mais elevados.
  • Muitos frequentam cursos de pós-graduação para se manterem actualizados.
  • No entanto, uma vez a exercer, podem ser forçados, por pressões comerciais, a voltar a utilizar métodos mais baratos e menos precisos. Isto acontece sempre à custa do paciente.

Isto cria uma zona cinzenta ética de que poucos falam – mas que muitos sentem internamente.

Há mais de 10 anos que promovo os conceitos da Slow Dentistry nas minhas palestras por todo o mundo, e é surpreendente como tantos colegas vêm ter comigo depois, em privado, para dizer que gostariam de poder ter mais tempo, mas que o seu chefe simplesmente não lhes dá essa possibilidade. É de partir o coração porque, se pensarmos bem, os seguros dentários não vêem qualquer diferença entre a qualidade de um tratamento e a de outro, e não controlam isso. Por isso, na realidade, o pior e o melhor tratamento serão recompensados da mesma forma. Esta é uma das razões pelas quais eu nunca trabalhei com seguradoras em mais de 25 anos. Compreendo claramente o seu valor. Pessoalmente, tenho um seguro para as minhas questões médicas, mas em medicina dentária, há muito para evoluir, especialmente no que toca a este tema.

Cuidados de saúde vs. medicina dentária: uma comparação falhada

Imagine este cenário:

Se tiver uma lesão suspeita no cérebro, o seu médico de clínica geral não a diagnostica e trata sozinho – encaminha-o para um neurologista e, se necessário, para um neurocirurgião com a mais recente tecnologia de ressonância magnética.

Se tiver um cancro agressivo, não é tratado por um médico de clínica geral, mas por um oncologista que utiliza diagnósticos de precisão e equipas multidisciplinares.

Na medicina, os casos graves são encaminhados para especialistas equipados com tecnologia de ponta.

Porque é que este modelo não se aplica claramente à medicina dentária?

Infecções dentárias, falhas nos canais radiculares, patologias dos maxilares e falhas catastróficas de tratamentos antigos não são problemas menores.

Podem causar inflamação sistémica, doenças crónicas, complicações cardiovasculares e até ter impacto no cérebro.

Os riscos são maiores do que a maioria dos pacientes imagina.

Exigem capacidades de diagnóstico avançadas, uma abordagem de equipa interdisciplinar e médicos experientes apoiados por uma tecnologia fantástica. Mas como encontrar a equipa certa?

A analogia entre 2 estrelas e 5 estrelas

Se reservar um motel de 2 estrelas, está a aceitar um alojamento mais simples – porque é claro e transparente. Desempenham um papel importante para os viajantes com rendimentos mais baixos.

O problema surge quando um serviço vende uma promessa de 5 estrelas, mas entrega uma qualidade de 2 estrelas – sem que o paciente sequer saiba.

Em medicina dentária, sem sinais exteriores óbvios, um paciente não consegue distinguir entre:

  • Um diagnóstico apressado utilizando radiografias 2D desactualizadas versus uma avaliação CBCT abrangente e uma abordagem de equipa.
  • Uma desvitalização tradicional com instrumentos manuais não esterilizados e sem dique dentário versus um canal radicular desinfectado com laser e selado com biomateriais biocompatíveis e com todas as medidas de segurança em vigor.
  • Uma coroa de baixo custo versus uma coroa de cerâmica totalmente biocompatível, de alta precisão e concebida digitalmente, cimentada com protocolos padrão de ouro (demora muito tempo).

As diferenças são invisíveis – até surgirem problemas, muitas vezes anos mais tarde.

Nessa altura, a confiança, o tempo, a saúde e as finanças do paciente podem ter sido gravemente comprometidas.

O problema da transparência na era digital

No ambiente digital de hoje, surgiu outra questão preocupante:

Há muito pouca regulamentação sobre o que as clínicas dentárias podem declarar nos seus websites.

Fotografias de banco de imagens, linguagem orientada para o marketing e afirmações não verificadas criam um cenário digital em que qualquer clínica – independentemente da sua tecnologia, materiais ou protocolos – pode comercializar-se como “topo de gama”.

Os pacientes, que muitas vezes desconhecem as nuances clínicas, confiam muito nestas impressões online.

Mas a qualidade de um website não é a qualidade dos cuidados de saúde.

Infelizmente, as seguradoras reforçam este problema.

Para muitas seguradoras, a principal métrica é o volume de vendas e os códigos de procedimentos facturados, e não a qualidade do diagnóstico, a precisão do tratamento ou os resultados dos pacientes a longo prazo.

Não existe actualmente um sistema de supervisão normalizado que avalie:

  • A qualidade dos instrumentos de diagnóstico utilizados.
  • As tecnologias e os materiais seleccionados.
  • A segurança biológica dos procedimentos.
  • Os resultados de saúde e a taxa de complicações ao longo do tempo.

Esta ausência de controlo de qualidade orientado para os resultados é profundamente problemática – especialmente numa era em que a tecnologia permite facilmente o acompanhamento, a auditoria e a elaboração de relatórios detalhados.

O desafio da competitividade e a relutância em referenciar

Há ainda outro desafio importante que deve ser abordado:

Em muitos países, devido à elevada competitividade do mercado, as clínicas dentárias tendem a evitar encaminhar os pacientes para especialistas, mesmo quando o diagnóstico avançado, a cirurgia ou os cuidados interdisciplinares beneficiariam claramente o paciente. Mas as comissões perdem-se e esta é uma triste realidade que afecta milhões de pessoas. Obviamente, ainda há muitos dentistas excelentes que têm códigos morais fortes e preferem fazer o que é correcto. A esses, o meu maior respeito.

Ao contrário do que acontece na medicina geral – onde os casos graves são encaminhados para outras especialidades – na medicina dentária, o medo de “perder o negócio” sobrepõe-se muitas vezes aos cuidados óptimos do paciente.

Esta relutância em encaminhar é um mau serviço para o paciente, mina a confiança e perpetua uma abordagem fragmentada e incompleta à saúde.

Visão, confiança e materiais de qualidade

Sempre disse que a visão em medicina dentária consiste em ver não só o que existe, mas também o que poderia ser melhor.

A confiança na medicina dentária é construída quando os pacientes se sentem seguros de que a sua saúde é prioritária e não apenas o seu pagamento.

E os materiais de qualidade não são um luxo – são uma obrigação.

Todos os materiais colocados no corpo humano têm um impacto biológico.

Os materiais mal fabricados, entre outras coisas, acarretam riscos – por vezes silenciosos, mas eventualmente profundos.

Não podemos permitir que as pressões sobre os preços reduzam a segurança biológica e a longevidade dos nossos tratamentos.

O futuro da transparência e da responsabilidade na medicina dentária

Eis o que tem de acontecer:

  • Diferenciação pública obrigatória entre clínicas com base em tecnologias, materiais, protocolos e normas clínicas e não apenas em preços.
  • Comunicação transparente durante as consultas sobre os métodos de diagnóstico e as escolhas de materiais.
  • Programas de certificação que reconhecem as clínicas que investem consistentemente nas melhores práticas.
  • Campanhas de educação dos pacientes sobre os riscos de técnicas e materiais desactualizados.
  • Reforma dos seguros para medir não só o volume de procedimentos, mas também os resultados clínicos reais e a segurança biológica.
  • Organismos de controlo ético capazes de verificar as alegações feitas no marketing e de responsabilizar as clínicas.
  • Incentivar culturalmente o encaminhamento adequado para especialistas, colocando a saúde dos pacientes à frente da concorrência comercial.

Os pacientes merecem fazer escolhas informadas.

E os dentistas merecem um sistema que recompense a qualidade, a ética e a excelência tecnológica – e não apenas o volume.

Considerações finais: um apelo à evolução, não à culpa

É fácil criticar os dentistas que trabalham em circunstâncias difíceis.

Mas temos de reconhecer que muitos encontram-se entre o desejo de prestar cuidados de saúde de nível mundial e a gestão dos desafios económicos do mundo real.

No entanto, o reconhecimento do problema não é suficiente.

O sector tem de evoluir.

Está na altura de:

  • Falar abertamente sobre a lacuna entre as possibilidades tecnológicas e a prática no mundo real.
  • Promover a transparência, a certificação e as normas baseadas nos resultados.
  • Incentivar as seguradoras a valorizarem os resultados de saúde e não apenas o procedimento em si. A qualidade é importante!
  • Educar os pacientes sobre o que é uma medicina dentária moderna e segura – e porque é importante.

Porque a verdade é simples: os pacientes merecem mais. E a medicina dentária merece um sistema baseado na confiança, na qualidade e na responsabilidade.

*Escrito pelo Dr. Miguel Stanley.

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